Correspondência, escrito por Bartolomeu Campos de Queirós



Correspondência
Autor: Bartolomeu Campos de Queirós
Ilustrador por Angela-Lago

Por Érika de Pina Lopes 

Para se fazer uma análise da ilustração de Angela-Lago para o livro Correspondência, de Bartolomeu Campos de Queirós, editado pela RHJ, devem ser levados em consideração muitos detalhes que fazem com que texto e ilustração se complementem, conforme veremos a seguir.

O texto, feito à época do movimento “Diretas Já” e da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, é altamente sugestivo e nos leva a muitas reflexões, intensificadas e ampliadas pela ilustração e pelo projeto gráfico, desde a capa. A capa do livro representa uma carta, em seu envelope de borda verde e amarela, já selada e carimbada, embora sem destinatário ou endereço. Esse detalhe nos remete à hipótese de que ela se destina ao mesmo tempo a todos e a ninguém em particular, isto é, ela foi enviada e, para quem se interessar, é um convite à leitura.

Junto ao início do texto, a ilustração nos mostra a imagem de uma pessoa derramando um pote de tinta que vai se espalhando até o final da página, dando-nos a impressão de continuidade. Propositadamente, ao que parece, essa tinta derramada é verde e amarela, e a impressão de continuidade é mantida até o final do texto, com a última ilustração.

Virando-se a primeira página do texto, temos a figura de uma alegre vilazinha bastante patriota, já que ostenta a bandeira nacional no alto de uma de suas casas. O texto e a ilustração nos informam que desta vilazinha parte uma carta por mar, o que vai caracterizar esse lugarejo como uma possível aldeia de pescadores, pequena, pobre e sem recursos de comunicação e transporte: a carta é levada em uma canoa a remo.

Essa mesma canoa retorna na seguinte ilustração, ancorada à outra margem, num ambiente rural, cujos moradores despacham sua correspondência por trem. Nessa prancha começa a haver uma maior interação entre imagem e texto, com a fumaça do trem grifando a palavra destacada, “nossa”. Recurso semelhante irá repetir-se nas ilustrações posteriores.

Na página seguinte, vemos a estação ferroviária deixada para trás e uma carta sendo levada por ciclistas até uma fábrica, mostrada a seguir. A fumaça que sai de suas chaminés polui a palavra “violência”, posta em destaque no texto. Os desenhos de Angela-Lago são tão detalhados e minuciosos que surpreendem o leitor. Por exemplo, se dobrarmos essa folha para trás, ela continuará tendo sentido, estabelecendo uma continuidade com o desenho anterior. A sequência das ilustrações, portanto, constitui ela mesma uma linha narrativa.

Prosseguindo, vemos, através das nuvens de fumaça, a fábrica que ficou para trás. A bicicleta, encostada, já cumpriu sua missão de transportar a carta. Agora, no céu que cobre uma cidadezinha do interior, vemos uma nuvem que sopra palavras, e novamente outra carta inicia sua viagem, desta vez a cavalo, em direção a uma fazenda. De lá, a correspondência prossegue sua jornada de ônibus.

Em seguida, é de um arraial que sai, puxada por uma carreta, a carta que agora está bem grande. Observa-se que, à medida que a narrativa flui, ajuntam-se novas informações, a correspondência vai aumentando de tamanho (e de força), até que no final do texto é mostrada uma enorme carta que simboliza a soma de todas as outras e que, mesmo contendo diferentes inquietações de um povo, constitui um todo, um só ideal a alcançar.

Do arraial, a carta vai por via aérea a uma capital (talvez o Rio de Janeiro), caracterizada por altos prédios e uma presumível superpopulação. Neste ponto, o texto nos propõe uma palavra para reflexão: “igualdade”, ricamente explorada pela ilustração que demonstra o contraste entre prédios e favelas.

Pelo rio chega-se aos mangues e ao índio e depois, por mar, a uma espécie de “fim de linha” aonde inúmeras pessoas, vindas de diferentes lugares e usando diversos meios de transporte, trazem cartas e mais cartas. Embora o traço miniatural de Angela- Lago não nos permita distinguir muito bem os rostos dessa multidão, ali parecem estar presentes negros, índios, orientais, homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, operários, ou seja, a ilustração continua refletindo sobre a palavra “igualdade”.

A última cena nos mostra uma urna onde são depositadas todas as cartas sob a forma de votos, deixando no texto o destaque para as palavras “justos, próximos, verdadeiros”. Ao ser aberta, finalmente, a carta revela seu conteúdo: é a bandeira nacional, que simboliza todas as palavras que foram acordadas nas sucessivas cartas que formam o texto escrito. São as palavras que se identificam aos anseios, às lutas, aos desejos, transformados no desejo de uma única conquista. A figura de uma borboleta amarela no alto da página representa a fragilidade, a beleza e a liberdade de nossos sonhos, ao mesmo tempo em que nos alerta para o fato de como é fácil perdê-los.

O contínuo fio condutor da ilustração, que se iniciara ao se derramar a tinta na folha de rosto, arremata-se agora na figura de uma delicada pena que, não estando vinculada necessariamente ao texto ou ao contexto do restante das ilustrações, adquire um teor metalinguístico. Mostra-nos o outro lado que possibilitou a realização desse trabalho, isto é, de um lado a tinta, do outro, a pena – imagens e palavras.

Texto e ilustração mostram-nos o Brasil como ele é, uma fusão de vários grupos étnicos que, além das diferenças pessoais, possuem recursos, meios de sobrevivência, habitação e transporte diferentes, mas possuem também coisas em comum, como os sonhos, as esperanças, a fé, o verde e amarelo de sua bandeira.

Ao analisarmos Correspondência, não podemos deixar de nos referir a duas particularidades do texto e da ilustração. A primeira é a presença insistente do número três no texto escrito; a segunda é a circularidade da ilustração. Ao falar sempre em três palavras, o autor possivelmente nos remete à ideia das três partes que, segundo Freud, constituem a nossa personalidade, o id, o ego e o superego. Dizemos isto, pois o texto nos fala de palavras que são reveladas em sonho (desejo), são cobradas na realidade (consciência) e disciplinadas em leis (a constituição), isto é, se estabelecem em equilíbrio, como ocorre em nossa mente. Não é, certamente, a única leitura que esse número comporta. O três é muito presente no simbolismo religioso também, é a imagem da Trindade, perspectiva que se harmoniza com destinatários e missivistas das cartas que compõem o texto escrito, cujos nomes foram buscados na Bíblia: Ana, Maria, Marta e Sara; Lucas, Marcos, Mateus e João. Ainda, no simbolismo numerológico, a soma do quatro (quatro correspondentes homens e quatro mulheres) e do três resulta no número sete, número mágico que indica a plenitude e a perfeição. Como se vê, a ideia de totalidade de esforços e de desejos fica reforçada neste livro de várias maneiras.

O texto é estruturado de forma circular, isto é, a carta passa de mão em mão e no final volta para Ana, a que plantou a ideia. O texto de estrutura circular nos dá a esperança de que há sempre um recomeço, sempre se pode voltar ao princípio. Diferentemente do texto linear, que apresenta um início e um fim, no texto circular o fim funde-se ao início, num movimento continuado. O mesmo ocorre com a ilustração de Angela-Lago, em perfeita sintonia com o texto de Bartolomeu Campos de Queirós. Contínua e progressiva, a ilustração se estende em movimento. Se não precisássemos fragmentar a sequência das imagens pela virada de página, provavelmente elas se aproximariam bastante de um filmezinho, não só permitido como recomendado para todas as idades.

* Este texto foi produzido por Érika de Pina Lopes em disciplina ministrada por Vera Maria Tieztmann Silva (Leitura Literária e outras leituras: impasses e alternativas no trabalho do professor. Ed. RHJ) na graduação em Letras da Faculdade Federal de Goiás.

Um comentário:

Angela-Lago disse...

Querida Érika, muito obrigada pela análise cuidadosa, sensível e inteligente.
Um beijo,
Angela